O tempo daquela tarde arrastava-se colado às asas da demora, a brisa, suave, quente, passava sem que com ela fosse arrastado tempo algum! Seu mundo inteiro quedava, também ele, lento no seu quedar.
Os seus olhos piscavam, esfregavam-se, abriam muito e voltavam a semicerrar.
Não podia sequer pensar em adormecer. Isso, nunca! Nunca se perdoaria se tal acontecesse. Mas não era fácil resistir aquele embalo frontal do início de tarde, ao bom torpor no corpo no final do bom almoço, à sombra da árvore antiga que abriga do sol quente, ao céu, todo ele azul, lá por cima... Como resistir-lhe? É que não é preguiça, pois preguiça controla-se, e isto, não é coisa que um homem possa controlar. É que se o poder da mente tem muita força, o do corpo tem bem mais... E isto era poder já no sobre-humano. Resistir a este embalo, devia de ser considerado pecado animal! Mas ele, sem outra alternativa, pecava, atentando contra si!
Nunca fora dado a confusões, desde sempre se habituara à pacatez do mundo, ao seu lado sedoso, arrumado e arejado. Odiava todo e qualquer tipo de desorganização. Arreliava-se a sério, quando lhe trocavam as voltas à sua bem ensaiada e metódica rotina. Tudo tinha de bater sempre e pelo certo, no entanto, fervilhava por mais com que se preocupar, precisava de mais material para catalogar e colocar no seu devido local, mais agitação, mais frenesim, para processar e organizar...
A esta hora, na rua, passavam as mulheres. Com elas iam os baldes cheios de comida para os animais que as esperavam nos campos, a elas, mulheres, e a ela, comida!
Elas passavam, juntavam-se umas às outras, falam umas com as outras, umas sonoras, outras discretas, nenhuma calada, todas lhe davam as boas tardes ao passarem por ele, que sentado, pestanejando, a esforço, lhes retribuía no seu frouxo: - boa tarde senhoras!
Sossegava quando acabava a procissão das mulheres para o campo, era tímido, já referido, não gostava de confusões, e para ele, ter de dar as boas tardes a todas aquelas mulheres constituía uma enorme confusão e transtorno!
Conhecia todos os peixes grandes à primeira mirada! Ele próprio peixe graúdo, ainda que temporariamente devolvido de novo ao pequeno aquário, era no primeiro segundo que identificava a asa a todo e qualquer indivíduo. Ele, como muitos outros conhecidos seres, não fora feito para uma só terra, um só mar, um só rio... Seu corpo, como muitos outros metabolismos do planeta, urgia por movimento, por novas visões, por acontecidos diferentes, novas maneiras, novas formas... E ele sabia que era desses, dos que necessitava que sempre a seguir ao novo, viesse novo novo!
O que não é novo, é que quem nasce assim, na urgência da viagem, vê fácil os seus pares. Os anseios denunciam, há vontades a mais em partir a um chegar. E a chama atraia a chama, duas chamas ardem sempre mais que uma, e isso sente-se, nem que seja na sua máxima manifestação – a dor!
Em seu caso, nada de dor, era alérgico à dor, repugnavam-lhe as dores... Nem sequer tinha tempo para as dores...Todo o seu tempo estava guardado para a espera. A ele, só lhe restava a paciente e mais tranquila possivel espera!
Não gostava de falar com as mulheres, ponto. Que tem isso de mal ou demais?
Perdia-se em pensamentos labirinticos depois que a azáfama das mulheres passava. Naquele início de tarde, de uma já madura Primavera, o sol sussurrava aos ouvidos dos velhos que vinha Verão abafado.
Estava quente! Calor esse, que misturado na gritaria dos pássaros no mato, faziam-no suar, sonhar e acordar, tudo isto no mesmo instante.
Nunca tinha acontecido ter adormecido. Pelo menos, é isso que a consciência responde ao seu íntimo, embora lhe não saia da memória aquele fim de dia em que chegara à taberna e o Zé dos Pneus fizera chacota de o ter apanhado a ressonar debaixo da árvore... Mas aquilo não passava de invenção do outro! O que pode ter acontecido, é tê-lo apanhado em pleno sonho acordado e julgou-o adormecido. Nada mais que isso!
Difamação à parte, não se reconhecia, a si próprio, defeito de selo algum no exercer de sua tão entediante, nobre, necessária e fastidiosa missão.
Estava certo de suas qualidades, nunca duvidara das suas capacidades e sabia-se capaz de ultrapassar todas as dificuldades a que a sua missão o sujeitaria, mas por vezes, nos aparentemente mais simples obstáculos, emperrava. Havia dias difíceis. Hoje era um dia difícil.
Dia em que vem o tempo, e vá-se lá saber porquê, decide não passar no ritmo a que nos habitua, tem que ser chamado de dia bastardo. Dia em que é o tempo que nos engana e não o contrário, nem devia contar como dia! É que nós somos de hábitos, confiamos nos hábitos, gostamos e vivemos dos hábitos, e depois vem ele, o tempo, o regulador de todos eles, e desmama-nos assim duas vezes numa só!
São dias duros estes em que somos atraiçoados pela nossa própria invenção, o pupilo vence o mestre e o mestre derrotado, disfarça mal, amua, reivindica, atira o pó para os lados e desdenha o vencedor: - o tempo não é nada, só o sol existe, e mesmo esse existe lá tão ao longe que quase não nos toca sua existência.
A paciência depende sempre do paciente, dos seus anseios, das suas preocupações, das suas preferências e disponibilidades...
Neste caso, o paciente é bom, conhece de onde vem o nome que o faz. Tem pressas mas prende, tem vontades mas segura-as, sabe que a vida vem mais à frente, para além do que se vive, há sempre outra vida que se tem de viver. Além do além, virão sempre novos aléns... Não é assim que fazemos? Não é assim nosso comum projecto?
Que fazer, quando só a espera faz sentido? Que inventar, para além do real inventado? Haverá mais capacidade de reinventar o que não há! Fazer do que não é, puro ser? Quem se faz capaz?
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